O perereco aconteceu numa fábrica de sabão que ficava lá na Linha Forte Augusto, no bairro do Pau Grande, bem na divisa do Sovaco da Mula, em Santos.
A curriola que pegava no batente na fábrica aproveitava a folga do almoço e batia uma bolinha. Esse lance tinha duas serventias pra eles: ajudava a enganar o estômago, que sempre chiava com a pouca bóia fria, e refrescava a cuca. E era assim que a moçada escorava o repuxo e ia levando pra frente.
Um dia, no meio de um bafo-de-boca, apareceu a idéia de tirarem um racha entre casados e solteiros, a valer barril de chope e tudo. A turma se ligou nesse lance escamoso. Foi a maior animação! O Zé do Sebo ficou de juntar a patota argolada e o Tiziu ficou de cuidar dos solteiros. E partiram pra organização. Arrumaram camisas emprestadas, bolas, apito, campo e os cambaus. Fizeram vaquinha pra comprar o santo chopinho. E se plantaram à espera do grande domingo do jogo.
Porém, no sábado, véspera da pelada, entrou areia. O Zé do Sebo foi fazer a escalação dos casados e se tocou que na sua banda, entre viúvos, ajuntados e regulamentados com papel de cartório, só dava dez. Como de saída já haviam feito o trato de que não valia laço (só podia jogar quem trabalhasse na fábrica), a barra ficou suja. Os casados se lamentaram pacas. Foi um bochincho sentido. Mas o Zé do Sebo deu moral:
-Num tem nada, gente. Nós vai lá com dez e belisca esses solteiros assim mesmo.
Esse plá azedou o ambiente. Pro Tiziu, chefe da banda livre, os inimigos virem com dez era um esculacho. Por isso deu o estrilo:
-Aqui, ói, que cês vem com dez! Depois a gente ganha e cês vão avacalhar a guerra espalhando que a gente jogou com mais gente. Ou vem de onze, ou não vem.
Aí empacou o troço. Teve mil papos, estudaram mil fórmulas. Os casados queriam que o jogo fosse dez contra dez, mas não deu pé: os solteiros, além dos onze titulares, tinham uns oito reservas. Detalhe: todos tinham dado grana pro chope e queriam jogar. O Tiziu propôs passar o Sarará, que estava ameaçando casar no fim do ano, pro outro time. Ninguém topou, nem o próprio. Pra botar pra baixo, o Sarará mesmo falou:
-Nós tá combinado de se amarrar, mas não tá amarrado. Eu num entro do lado casado porque pega mal pra moça. De repente, num dá certo e cumé que fica a cara dela? Ela é moça ainda...
Foi aí que o Bacalhau desencalhou a chata. No meio da bobeira geral, perguntou:
-Vale corno?
Ninguém se abriu. Então, ele foi em frente:
-Se vale, convida o Seu Manoel Gerente.
O alô foi aceito. Formou-se uma comissão de casados para ir falar com o homem. Logo que chegaram, explicaram o lance. Seu Manoel se aliviou; quando ele viu a curriola chegar, pensou logo que era pedido de aumento, ameaça de greve e tal e coisa. Metido dentro do assunto, virou todo simpatia. E, todo à vontade, engrenou um discurso:
-Nunca joguei bola. Nunca! Minha vida tem sido só trabalho, trabalho e mais trabalho. Comecei do nada e, com esforço, cheguei onde cheguei. Nunca me diverti, só trabalhei... e, depois de um suspiro, concluiu: -Bem que minha mulher me diz que preciso me divertir um pouco de vez em quando...
Era a deixa esperada pela patota. Apertaram um pouco e o homem aceitou, mesmo porque era uma bela oportunidade pra mostrar pra mulher que, apesar do importante cargo de sabujo do patrão, ele era tão querido pelos operários a ponto de ser convidado para uma pelada de confraternização. Aceitou, mas fez questão de deixar bem claro:
-Eu nunca joguei bola, nunca. Nem assisti a uma partida.
O Zé do Sebo explicou que ele ia ser ponta-esquerda, fazer número e pronto: os casados ficaram completos.
O perereco engrossou pro lados dos solteiros. Quando souberam que Seu Manoel ia ser ponta-esquerda, todos quiseram ser escalados de lateral-direito. Foi uma zorra. Mas a posição ficou com o Miguel Soneca, que era quem tinha sido mais descontado no ordenado aquele mês e estava, na opinião dos outros, com mais direito de descer a biaba no Seu Manoel.
Foi nesse clima que o jogo teve inicio. Seu Manoel Gerente entrou em campo com toda a corda. Correu pra todo lado como uma besta. Às vezes, a bola ficava pra ele e aí ele dava um bico pra qualquer lado. Não era fácil o homem.
A torcida já estava começando a se aborrecer com o Miguel Soneca, que não acertava o bruto -não por falta de vontade, mas por falta de chance: o gerente parecia uma vaca brava. Demorou pra cansar. Só no segundo tempo é que ele parou. Seu Manoel encostou na ponta e ficou, mas a bola não ia lá e o Miguel não era doido de ferrar o homem sem ser na jogada.
No entanto, de repente, uma bola espirrou na ponta. O gerente, todo sem jeito, levantou a perna e, sem querer, matou a bola. Foi uma algazarra, a torcida até aplaudiu. Seu Manoel se entusiasmou, quis fazer bonito. Armou o bico e tacou o pé. Nessa hora, o Miguel solou. Foi lenha. Seu Manoel empacotou. Rolou no chão gemendo de dor. Pra disfarçar, o Miguel Soneca chamou a ambulância.
No hospital, confirmaram que a perna estava quebrada e tacaram gesso no homem. Preocupado, ele chiou pro médico:
-Eu vou ficar aleijado, doutor?
O médico fez ar grave e sacou:
-Não! Mas nunca mais poderá jogar futebol.
Plínio Marcos