Já passava das 22:00h, rua escura, os transeuntes deste horário não são bem vindos enquanto o sol brilha. Na sua maioria são todos criaturas noturnas, noventa por cento deles são dependentes químicos e nunca estão satisfeitos com nada. A esta altura eu tenho que ficar esperto, saber “trocar idéias”, pois qualquer vacilo, qualquer palavra mal colocada é motivo de desavença. Resolvo tomar algo, chego em um bar com paredes engorduradas, teto embolorado e banheiro imundo. Observo o balconista e seu avental, não sei se ele usa o pano de chão como avental ou o avental como pano de chão, só sei que é podre.
Peço uma cerveja, o balconista nem me olha, é como se eu não estivesse ali, ele continua olhando o futebol que passa na teve, então eu peço mais alto: Chefia! Por favor, uma cerveja!
Ele continua sem tirar os olhos da tv, mas desta vez abaixa, abre uma portinha, puxa um litro com a mão direita e automaticamente leva a mão esquerda e retira um outro pano imundo que esta em seu pescoço, enfia a mão no bolso esquerdo do avental tirando um enferrujado abridor e só então, finalmente abre a garrafa. Puxa um copo ao lado da pia e me seve. Fiquei minutos tentando desvendar como ele fez tudo aquilo se sequer tirar os olhos da tv?
Começo a reparar nas mesas que existem no ambiente, em várias delas estão alguns caras, com barba por fazer, rodeados de prostitutas, verdadeiras damas da noite. Eles cheios de poses, batendo forte na mesa, gritando cada vez mais alto, mas sei que no final são elas que decidem o quanto querem tomar e se vão ou não sair com eles daquele boteco.
No canto direito tem uma figura inusitada, ele olha e diz:
- Você é poeta?
- Eu?
- Sim, você?
- Não, eu apenas escrevo, desabafo nos papeis.
- Escreve o quê?
Fico surpreso pelo interesse dele e respondo:
- Escrevo tudo que vejo, que sinto... tudo que acontece e que faz eu ter algum tipo de sentimento...
Então ele se aproxima de mime, com uma fala bem autoritária, dá a ordem:
- Então é você mano... é você quem vai escrever minha historia
Percebo que não posso contrariá-lo e procuro ficar calado.
- Aí, mano! Abre o caderno e põe as letras!
Resolvo acatar e me disponho a começas escrever.
- A Joana, você conhece a Joana? Ela saiu correndo igual uma louca, tinha duas tatuagens e uma delas eu arranquei na bala, pus todo mundo pra correr!
- Como assim, todo mundo?
- É verdade, cheguei em casa e foi macho correndo pra tudo que é lado, os filhos da puta dos amantes dela!
- Amante?
- A desgraçada tinha uns quatro amantes e coloquei foi logo todos de uma vez pra correr, na bala!
Reparo que, enquanto o homem fala, leva a mão na cintura. Ele porta realmente uma arma, começo a ficar preocupado com a situação. Ele se acalma um pouco e começa a falar como era lindo o seu relacionamento com Joana. Ela era atriz e ele um grande empresário, que por causa de drogas e bebidas pôs tudo a perder. Diz que tinha três filhos e não os via há mais de dois anos. Conta que a Joana, no dia do aniversário de um dos filhos, havia encomendado um bolo em um confeiteiro distante, ele foi buscar com seu carro e o bolo estava todo se derretendo, a cada freada que ele dava o bolo ameaçava desmoronar. Percebo que, atrás daquela figura estranha e rústica, existe uma pessoa, uma historia que pode ser a minha ou a de milhões de pessoas, começo a sentir pena daquela criatura...
É quando encosta uma viatura de policia. Descem todos de arma em punho gritando:
- Mão na cabeça! Cadê o Mentirinha?
Todos calados, inclusive o homem da Joana.
Um dos policiais chega perto e grita:
- Olha ele aqui, é ele, com o rapaz de boné!
O policial olha pra mim e pergunta:
- Quem é você?!
Antes que eu responda o homem grita:
- Ele é irmão da Joana, ele é gente de paz!
Fico surpreso com o tipo de defesa que o homem tenta fazer, mas logo em seguida o policial diz:
- Joana, um caralho! Este é mais um que vai cair no seu conto de marido traído!
- Este filho da puta inventa esta historia pra envolver suas vitimas e acaba roubando tudo de quem deu ouvidos a ele.
O policiais pegam a arma do Mentirinha e o algemam. Ele sai com os olhos cheios de lágrimas, porém com um sorriso nos lábios, e entra gritando no camburão.
Antes que a viatura parta, uma das damas da noite que esta no recinto me olha e diz:
- Não é mentira dele não, tudo é verdade, só muda o modo de olhar as coisas!
Se é verdade ou não, eu não sei... o que aprendi é que não são malignos ou benfeitores, os noturnos. A noite é o momento no qual respiram os discriminados, os boêmios, os sacanas, os noturnos...
A única verdade é que a viatura se vai e todos escutamos ao longe os gritos: Joana! Joana! Joana! Joana!...
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